* Gesiel Júnior
Principal tradição católica criada para lembrar a paixão, morte e ressurreição de Cristo, a Quaresma e a Semana Santa alteravam o cotidiano popular da Vila do Rio Novo desde os remotos tempos da Capela do Major.
No começo do século XX, em Avaré, quando chegava a “Grande Semana” a vida normal dos moradores dava lugar a um intenso sentimento religioso. Tudo muito diferente dos costumes atuais.
Durante 40 dias o destaque era a contenção de festas, danças e outras atividades de lazer por um período ritual de abstenções, de recolhimento e de austeridade, no qual nenhuma manifestação alegre deveria ocorrer.
Com efeito, a partir do Domingo de Ramos, sem que houvesse decreto ou lei alguma, as pessoas naturalmente se recolhiam. O alto-falante do Largo São João, por exemplo, não tocava músicas profanas e os cinemas e clubes fechavam as portas.
Influência clerical
A Igreja, mesmo já na República, manteve no calendário civil suas solenidades litúrgicas. E a Paróquia de Avaré programava típicas celebrações com inteira adesão de chefes políticos e de abastados fazendeiros.
Do pároco Carlos Pereira Bicudo ficou a recordação da Semana Santa por ele organizada em abril de 1910, quando trouxe bons pregadores para conduzir a Via Sacra, o Ofício das Trevas, o Lava-Pés, o Descimento da Cruz, a Procissão do Enterro e a Missa da Ressurreição.
Esse sacerdote exerceu o paroquiato por duas vezes no município. “Na sua última transferência – registrou o memorialista Jango Pires – padre Bicudo levou a corista Florisbela de Carvalho (Nhá Flor), casando-se e indo residir em Bauru, onde teve filhos. Mesmo assim sua vida nunca foi comentada com maldade e ele é lembrado com saudade e certo respeito”.
Já nas décadas de 1940 e 1950, o pároco da época, monsenhor Celso Diogo Ferreira (1903-1998) se notabilizou pelo capricho com que preparava tais cerimônias. As imagens dos santos ele as cobria de roxo. Seus paramentos igualmente eram roxos para sinalizar, com o rigor que o período exigia, o caráter penitencial a que todos os católicos estavam submetidos.
Por sua vez, em 1963, o padre Paulo Goecke (1924-1992), pároco da Igreja de São Benedito, inovou ao promover, pelas ruas centrais, a encenação da Paixão de Cristo.
Crendicese e costumes
Até meados do século passado a severidade era maior e não se comia carne durante a Semana Santa.
A abstinência era total e rígida e os donos das fazendas da região tratavam de providenciar o abastecimento de peixes para a população, graças aos açudes que nelas havia. O jejum (salvo o almoço de bacalhau) era obedecido e a Rádio Avaré AM só transmitia músicas clássicas ou cânticos religiosos.
Por sacrifício, o consumo de doces também era evitado. Não se podia nem mesmo chupar cana, pois seria desrespeito, já que Cristo tinha bebido fel.
A procissão do Senhor Morto era a maior da cidade e arrastava multidões, chovesse ou fizesse calor, todos querendo chegar mais perto do andor a fim de tocar nas chagas de Cristo.
Na madrugada da “Sexta-Feira Maior” para o “Sábado de Aleluia” havia a malhação do Judas, boneco feito com roupas velhas para ser queimado. No sábado, às oito horas, era celebrada a missa da Aleluia. Algumas crianças, fora da igreja, recitavam animadas: “Aleluia, aleluia, carne no prato e farinha na cuia”.
Algumas crendices populares tinham então amplo uso. Coisas simples e sem nenhum sentido ofensivo eram consideradas pecaminosas e ficavam proibidas, como olhar-se ao espelho, usar batom e mesmo perfume, por serem gestos de vaidade. E mais: tomar banho, namorar, cantar, dançar e assobiar seriam sinais de uma alegria incompatível com um momento tão triste e sagrado. Embriagar-se nesses dias seria o mesmo que condenar-se a nunca recuperar o juízo.
Comentava-se mais: manter relações sexuais nesses dias seria pecado mortal, principalmente na Sexta-Feira Santa. Espalhava-se oralmente tal crendice sob a alegação absurda de que o homem que assim procedesse, embora legalmente casado, ficaria impotente para o resto da vida e sua mulher, incapacitada para gerar filhos. Que coisa!
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Legenda-foto:
Encenação da Paixão de Cristo no Largo São Benedito (1963)
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- Do livro ‘Avaré em memória viva’, vol. III, de
Gesiel Júnior, Editora Gril, 2012