MEMÓRIAS DO REGIME MILITAR
Ditadura deixou marcas profundas em professor avareense
Educador relembra própria prisão e caso do avareense desaparecido durante os “anos de chumbo”
Da Redação
Embora tenha sido mais visível em grandes centros urbanos como São Paulo e Rio de Janeiro, a repressão exercida pela ditadura militar (1964-1985) também deixou marcas em Avaré. O cenário de perseguições e desaparecimento de oponentes do regime, no entanto, passou praticamente despercebido porque a maioria da população estava alienada em relação ao que realmente acontecia.
É o que relata o professor de História Alexandre Verpa Neto, 66. Para exemplificar a tese,elerelembra o caso do médico avareense Boanerges de Sousa Massa, cuja família até hoje não sabe o paradeiro. Formado em medicina pela Universidade de São Paulo (USP), Massa se envolveu com organizações de esquerda que lutavam contra a ditadura na capital. “O mais impressionante é que pouquíssima gente tem conhecimento do fato de que Avaré tem um desaparecido político”, pondera.
Segundo o docente, Boanerges foi protagonista de um acontecimento cinematográfico. Após um confronto com a polícia durante um assalto a banco com o objetivo de levantar recursos para ações de guerrilha, um de seus companheiros foi levado para o Hospital das Clínicas (HC) gravemente ferido. “A ordem das autoridades ditatoriais era que o militante fosse deixado lá, sem qualquer atendimento, para morrer. No entanto, Boanerges entrou disfarçado no HC, operou o companheiro e conseguiu fugir”, relata Verpa.
Levantamento feito pela Comarca junto à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos confirmou que Boanerges de Sousa Massa consta da lista oficial de desaparecidos políticos.
Segundo o relatório ao qual a reportagem teve acesso, o caso do avareense é considerado um dos mais cercados de “dúvidas, mistérios e controvérsias”. O documento diz que Massa foi participante da rede de apoio da Aliança Libertadora Nacional (ALN) e, posteriormente, militante do Movimento de Libertação Popular (Molipo), quando acabou preso em circunstâncias e data desconhecidas, embora sua prisão nunca tenha sido assumida oficialmente pelos órgãos de segurança do regime militar.
O documento diz ainda o avareense “passou a ser perseguido intensamente após realizar uma cirurgia para socorrer Francisco Gomes da Silva, militante da ALN baleado durante uma ação armada e irmão de Virgílio Gomes da Silva, também dirigente da ALN, desaparecido em setembro de 1969”, o que corrobora a passagem narrada pelo docente.
CLANDESTINO – A partir do episódio – continua o material – Boanerges foi obrigado a viver na clandestinidade, integrando a ALN. “Viajou para Cuba, de onde regressou como militante do Molipo, depois de receber treinamento militar naquele país. Foi visto pela última vez em 1972, sem que se possa precisar a data”.
CONTROVÉRSIA – Boanerges teve ainda seu nome envolvido em uma controvérsia. Segundo o documento, ele chegou a figurar na lista de suspeitos de ser o informante do regime ao desaparecer misteriosamente em 1971 quando vários de seus companheiros do Grupo da Ilha (nome pelo qual o Molipo também era conhecido) foram mortos.
No entanto, nada foi provado. A tese de que o avareense teria delatado colegas militantes caiu por terra em 2007, quando da divulgação do “Livro Negro do Exército” pelo Correio Braziliense. Segundo a reportagem, a página 607 aponta que ele foi preso em Pindorama (então estado de Goiás, hoje Tocantins) no dia 21 de dezembro de 1971 usando nome falso. “Portanto, a acreditar que o livro secreto diz a verdade, Boanerges não ajudou a repressão antes de ser preso”, conclui a análise do jornalista Lucas Figueiredo.
PRISÃO – Em 1975, enquanto lecionava uma disciplina na Escola Estadual Coronel João Cruz, o recém formado Verpa foi surpreendido por policiais que o arrancaram da sala de aula sem qualquer aviso prévio. No dia anterior, ele havia feito críticas ao regime militar. “Fui pego de surpreso, nem sabia o motivo. Só na delegacia, onde fiquei detido por algumas horas, tomei conhecimento de que havia sido delatado pelo pai de uma aluna. Não apanhei, não fui torturado, não me ameaçaram de morte, mas recebi uma reprimenda do delegado: “restrinja-se aos compêndios escolares, professor”. E olha que já estávamos no processo de abertura política do governo Geisel. Realmente não havia liberdade”, analisa.
O seu caso, no entanto, não é isolado. Outros dois professores avareenses também foram presos em situação semelhante, revela.
CIDADE CONSERVADORA – Para Verpa uma característica local – além da vigência da ditadura – explica a truculência. “Avaré tem um conservadorismo exacerbado. O município é, por exemplo, um reduto malufista. As coisas parecem agora ter mudado um pouquinho, mas é ainda é vigente um conservadorismo além do limite. Então é óbvio que naquela época as pessoas apoiavam o regime militar”, explica.
Já no final da década de 90, quase duas décadas após o fim da ditadura, o traço conservador da sociedade avareense novamente bateria à porta do professor. “Eu dava aula de História na rede privada de ensino e abordei a desigual estrutura fundiária mantida no Brasil desde a Coroa Portuguesa. Tempos depois, a direção do colégio me alertou a ter cuidado com o que fosse dito em sala, uma vez que a União Democrática Ruralista (UDR) havia reclamado com a instituição”.
Embora o caso não tenha resultado em qualquer desdobramento, o docente disse em sua defesa que apenas havia abordado a história do Brasil, nada mais que isso. “Mas se vocês quiserem que eu conte a história da Chapeuzinho Vermelho, também posso fazer”, respondeu o professor à direção do colégio na ocasião.
Apesar de alguns retrocessos, Verpa se mostra otimista com o Brasil atual. “Estamos caminhando. Hoje temos uma democracia ampla. No entanto, as forças reacionárias ainda exercem uma influência muito grande e há muitos filhotes da ditadura nos diversos setores da sociedade, principalmente na política. Ainda não nos livramos deles”, finaliza.